O espetáculo À Flor da Pele, do Grupo Teatral ApanelA, nos mergulha em uma cenopoesia que pulsa com a vida e a sensibilidade de Carolina Maria de Jesus. Livremente inspirado nas poesias da escritora, o espetáculo de rua aborda, com muita poesia, música e humor, temas como a desigualdade social, o machismo e a marginalização da classe trabalhadora.
É uma obra que não apenas retrata a complexidade da condição humana , mas o faz em um diálogo direto com o público, nas ruas e praças, à flor da pele. A dramaturgia, criada pelo próprio grupo, se divide em três atos que exploram a migração, o amor e a saudade, temas frequentes na escrita de Carolina Maria de Jesus. O espetáculo busca a felicidade como fio condutor, um conceito que ganha vida e se torna uma figura almejada, ligada a bens materiais, criticando a forma como o sistema define a felicidade.
Um dos pontos mais notáveis do trabalho é a pesquisa do grupo na linguagem do teatro de literatura de cordel. O espetáculo se apropria dessa linguagem, trazendo uma adaptação que honra a tradição e, ao mesmo tempo, a renova. É possível perceber a presença dos bonecões do interior de São Paulo no trabalho – sobretudo quanto à “bonecona” Felicidade – e a sugestão é que o grupo aprofunde ainda mais essa pesquisa, incorporando a estética e a força desses bonecos em suas atuações. A luta entre Lampião e o valentão, por exemplo, tem potencial para ser depurada em suas marcações e vozes, de forma a garantir que a plateia compreenda cada nuance dessa cena. Um treinamento vocal mais aprofundado poderia ajudar a depurar as vozes dos atores, especialmente nas passagens cantadas.
A inclusão do músico Renatinho Silva na encenação é uma escolha acertada. A música de Carolina Maria de Jesus é parte essencial da dramaturgia, e a proposta de que os atores também toquem instrumentos pode ampliar a conexão entre a cena e a trilha sonora. Para garantir que a voz dos atores seja ouvida com clareza, especialmente em um ambiente de rua, o uso de microfones headset é uma sugestão técnica válida que pode elevar o nível da apresentação.
Os figurinos apresentam uma rosa vermelha estampada, elemento que, conforme revelado pelo grupo no debate após a apresentação, simboliza a predileção de Carolina Maria de Jesus por rosas. O cenário também incorpora rosas. Sugerimos que a dramaturgia incorpore uma linha ou frase que reforce a conexão entre o significado da rosa no figurino e no cenário. Considerar a expansão do uso das rosas no cenário pode enriquecer a narrativa.
Em um momento de grande simbolismo, a cena em que o varal com as poesias é estendido se destaca. O grupo pode escolher entre ter uma música neste momento ou um silêncio construído, uma solenidade cênica que confere ainda mais peso à poesia de Carolina. A simplicidade de um varal – o cordel – de roupas ou de literatura se transforma em uma galeria de arte, onde cada poesia se torna um quadro a ser contemplado.
Recomenda-se, ainda, uma análise de um trecho da peça teatral que faz referência a um trem com destino ao interior paulista, partindo de Minas Gerais e passando por Franca, cidade explicitamente mencionada. É plausível que essa seja a jornada de Carolina em direção a São Paulo. Contudo, essa passagem da dramaturgia apresenta-se inconclusa, sem desenvolver uma narrativa completa sobre a viagem de trem. Seria interessante explorar a possibilidade de um desfecho para essa sequência, visando a uma maior contextualização da história.
O Grupo Teatral ApanelA, sediado na periferia de Ribeirão Preto, tem uma trajetória importante, desenvolvendo projetos sociais e levando o teatro de rua para diversos festivais. O espetáculo À Flor da Pele é um reflexo desse compromisso. É a beleza do teatro popular e de rua em sua forma mais pura: sensível, poética e politicamente consciente.
Meus sinceros parabéns ao grupo por sua criação colaborativa e sua dedicação em dar voz a uma das maiores poetas do nosso país.
Um abraço de boa vida,
Juliana Calligaris