O espetáculo Alinhavando, do Núcleo Artístico Corpus (NAC), é uma delicada e profunda obra que nos convida a uma jornada de volta no tempo. A sinopse já nos introduz a esse universo: Nila, Ablum e Ceceu encontram um diário em sua nova morada, e ao reviverem memórias, desvendam mistérios sobre quem o escreveu. O que se segue é um potente diálogo sobre os ciclos da vida de uma maneira lúdica e criativa.
A peça, idealizada e produzida pelo próprio grupo em Santa Bárbara d'Oeste, utiliza o teatro infantil para tocar em pontos que ressoam em todas as idades. O título, por si só, já é uma metáfora poética para o ato de costurar, de unir. E é exatamente isso que a encenação faz: ela "alinhavava os sonhos da infância, as aventuras da juventude, os desafios da vida adulta e as memórias que se carregam na velhice". Não são apenas descobertas de personagens, mas de "descobertas sinceras que toda criança, um dia, já viveu".
A linguagem do espetáculo abre espaço para a imaginação, para o faz de conta, e propõe uma nova experiência para o público infantil. A musicalidade é um ponto-chave, instigando o desenvolvimento motor, cognitivo e psicossocial das crianças, ao mesmo tempo em que fortalece os laços e vínculos da comunidade familiar.
É notável o trabalho do NAC, que atua com artes integradas desde 2016 e produz obras para a cena, a literatura e o audiovisual. O grupo demonstra uma preocupação com a formação artística e cultural, como mostra a trajetória de seus integrantes.
Lucas Casagrande, ativista cultural e fundador do NAC , Gregory Davi, que já teve sua atuação premiada , e Victória Oliveira, que iniciou seu contato com as artes na infância , se unem em uma criação coletiva que é, ao mesmo tempo, sincera e tecnicamente precisa.
A ficha técnica detalhada revela uma equipe dedicada, com nomes como Bete Diva na orientação musical, Felipe Vieira Souza na cenografia e figurino e Michele Bueno na produção executiva. Essa atenção aos detalhes mostra o cuidado e a seriedade com que o grupo aborda o teatro infantil, fugindo de uma visão simplista e elevando a arte para os pequenos a um novo patamar.
Um dos aspectos notáveis da obra reside em sua forma de abertura, que já apresenta a ação em curso. Essa característica, típica da dramaturgia contemporânea, demonstra a inteligência da encenação. A peça inicia e conclui, de maneira épica, entrelaçando presente, passado e futuro em uma espiral narrativa. O teatro épico manifesta-se, inclusive, por meio de letreiros que evocam situações dramáticas não concretizadas, mas que se realizam ao serem apresentadas ao público. Exemplos como "Não Está Aqui" ou "Não Tem Nada Escrito" ilustram a estrutura dialética do teatro épico, que se baseia na contraposição de ideias. O grupo demonstra grande habilidade ao explorar essa dinâmica.
Outro ponto forte é a abordagem intuitiva da companhia. A intuição, embora muitas vezes considerada espontânea, pode ser cultivada, mediada e orientada. Estudos do neurocientista Michael Tomasello e do teatrólogo e pedagogo Richard Courtney revelam que a intuição, assim como um algoritmo de rede social, pode ser treinada e aprimorada através da estimulação do sistema nervoso central e do equipamento sináptico e cognitivo, gerando resultados específicos, como a criação de uma obra de arte por artistas dedicados. O grupo demonstra um notável desempenho nesse processo.
A construção da dramaturgia a partir das músicas é outro elemento fundamental, pois as canções evocam um universo imaginário e servem como base estética para o desenvolvimento do roteiro. A ausência de um texto fixo, substituído por um canovaccio constantemente reelaborado, confere à encenação um caráter vivo e desafiador. Essa abordagem coloca os atores em constante estado de alerta, impelindo-os a reagir ao inesperado e a aprimorar a escuta, elementos cruciais para a criação em cena.
Alinhavando é um espetáculo que tece, com delicadeza e afeto, a complexidade da vida. É a prova de que o teatro para crianças pode ser um veículo para reflexões profundas, sem perder a leveza e a magia.
Meus mais sinceros cumprimentos ao NAC por essa obra que nos lembra que a memória é o fio que nos costura, e que o diário mais secreto de uma criança é, na verdade, a história de todos nós.
Juliana Calligaris