Rabugentos Cia Teatral nos joga diretamente em uma fábula clássica com o espetáculo "O Arquidiabo e o Camponês", livremente baseado em "Belfagor, o Arquidiabo" de Maquiavel. A premissa, que é a espinha dorsal desta comédia de rua, é de uma acidez filosófica inegável: os juízes supremos do inferno concluem que a única causa para a danação eterna dos homens é o fato de terem sido casados na vida terrena. Essa constatação, irônica e atemporal, exige o envio do arquidiabo Belfagor à Terra para vivenciar o vínculo matrimonial por dez anos e, assim, comprovar a queixa dos condenados.
O espetáculo, adaptado por Alexandre Roit, explora temas como a moralidade, as relações humanas e a natureza do casamento com uma abordagem cômica e crítica. A versatilidade da montagem, preparada para palco italiano ou praças, permite que o grupo insira cenas cotidianas e referências ao momento socioeconômico atual, mantendo-se fiel ao enredo maquiaveliano.
No plano terreno, Belfagor encontra o camponês João Mateus. É neste encontro que reside a força popular da peça. João Mateus é uma figura que flutua entre a ingenuidade de uma criança e as tramoias dos grandes corruptos. O que começa com o medo rapidamente se transforma em uma parceria inusitada, que inevitavelmente descamba para a competição. Esta dinâmica entre o diabo (a malícia ancestral) e o camponês (o malandro que se faz) é o espelho de nossas próprias dualidades e da nossa capacidade de ser anjo ou demônio conforme a conveniência.
A obra de Maquiavel, por si só, já é um reflexo da posição da mulher na sociedade medieval. No entanto, a adaptação contemporânea, através do prisma da Rabugentos Cia Teatral, permite-nos ir além. A Rabugentos, com sua trajetória desde 2004 e um repertório que inclui obras de Suassuna, demonstra um profundo apreço pelo teatro popular e de diferentes vertentes.
A comicidade do espetáculo é uma ferramenta de crítica social. O riso é a maneira mais direta de questionar por que os condenados à danação eterna justificam seu destino pelo casamento. Seria o matrimônio, então, o verdadeiro teste moral da humanidade, o fio de Ariadne que nos guia (ou desvia) para a perdição?
Com o trabalho de Gilberto Bellini e Antonio Carlos da Costa no elenco e a direção de Roit, o espetáculo nos faz rir da nossa própria desgraça e das contradições dos relacionamentos. A Rabugentos Cia Teatral transforma uma fábula quinhentista em um comentário sobre o nosso tempo, provando que o teatro de rua é o melhor palco para questionamentos tão antigos quanto a própria moralidade.
Meus parabéns ao grupo por sua excelência em dar vida a esta obra instigante e necessária.
Meu abraço e meu carinho ao grupo!
Juliana Calligaris