A Baleia e o Labirinto:
Um Brado de Guerra na Periferia do Capital
A cena se abre com a presença de mulheres expectantes, sérias e concentradas, em um ritual de acolhimento. A música, que evoca o canto distante e tenso de uma baleia, e o som constante da água que escorre e borbulha, constrói uma ambiência de profunda sensorialidade. Neste cenário, surge uma personagem, funcionária da Amazon, demitida após um erro de avaliação de um produto, e imediatamente nos é imposto um dilema: ela perdeu seu corpo, e agora, busca nossa compreensão. Este é, de imediato, um metateatro, onde a personagem se mostra autoconsciente e, ao narrar sua história, nos convoca a uma tecnologia de sobrevivência: o teatro.
A história avança em camadas, como as profundezas de um oceano. A mulher-funcionária, desprovida de seu corpo, encontra sua forma onírica em um sonho, transformando-se em uma baleia de dimensões colossais, que respira e irradia luz. Essa metamorfose não é apenas um escape, mas um grito de guerra. “Foda-se a Amazon, sou uma baleia!" — um brado que ecoa a revolta contra um sistema que animaliza os corpos femininos, trans, e de todos aqueles que subvertem a norma. O espetáculo nos força a refletir sobre os corpos que a sociedade se permite degradar com termos como "porca", "anta", "mula" e "baleia". A identificação com a baleia é, portanto, um ato de resistência, de apropriação e de celebração da liberdade feminina.
A liberdade da baleia é a imensidão do oceano; a da mulher, um sonho que se torna realidade. A origem da personagem, uma ilha onde suas mães e ancestrais habitaram, nos remete a um matriarcado ancestral e mítico: o Matriarcado de Pindorama; uma Utopia de Thomas More, um lugar livre das mazelas do capital, do supremacismo e do patriarcado. A destruição dessa comunidade ancestral pela construção de um resort se reflete na teia de aranha do www, na complexidade e nas múltiplas camadas da nossa existência. O arpão da Amazon, materializado em letras e números codificados, emerge como o símbolo do masculino e do patriarcado, que fere, corta e destrói, buscando o fim do sonho. A luz, que oscila e brilha em um tom alaranjado, evoca a chuva ácida que cai sobre a cópula/cúpula artificial das cidades, e nos leva de volta ao www, a essa sociedade binária de "liga/desliga", "céu/inferno", que nos aprisiona e nos faz meros elementos de uma engrenagem maior.
A encenação, profundamente sensorial, nos mergulha em um universo onírico onde tudo se torna palpável: o som, o corpo, as texturas, a destruição das caixas. O sonho é narrado por um microfone, em um gesto que sugere um teatro pós-dramático, onde as realidades se sobrepõem, e a voz amplificada do sonho transcende o dramático. Quando a fala volta à normalidade, retornamos a uma estrutura autoconsciente e metaconsciente, revelando a dualidade entre o sonho e a realidade. A inspiração em obras como "A Paixão Segundo G.H." de Clarice Lispector é nítida na narrativa (pelo menos para esta espectadora) e na estrutura da personagem, que se metamorfoseia e se funde com o universo que a cerca.
Nesse labirinto kafkiano, a baleia-mulher navega pelos detritos do inconsciente e se choca com a dura realidade do consumo desenfreado e da poluição. A indústria do capital, da qual a Amazon é o expoente máximo, precisa de água para subsistir, a mesma água onde as baleias nadam e se comunicam. A personagem, que no início se revolta, torna-se uma celebridade divina e internética e a iluminação do espetáculo, então, evoca o código de barras, a ironia de ser celebrada por sua rebeldia em um sistema que a mercantiliza.
O espetáculo atinge seu ápice quando a mulher, agora transformada em bits e bytes, se afoga em um mar de números binários. Sua fuga para o mar, após o seu colapso da e na internet, evoca a transformação em espuma do mar daquela história de Hans Christian Andersen… E a recusa de Bartleby, o escrivão, de Herman Melville. A baleia-mulher desafia a representação sexualizada da sereia e declara sua identidade como baleia mesmo, rejeitando a violência da internet. Ela, finalmente, reencontra suas origens e se funde em um só corpo, em uma dinâmica de yin e yang. A baleia agora, com um coração gigante novamente, anseia pela água que lhe é negada, enquanto a mulher, que sob o uniforme carregava a pele de baleia, finalmente a veste por completo.
A perda dos sentidos é o caminho para o reencontro com as raízes. A baleia, com seus pulmões e coração imensos, personifica essa metamorfose final, onde a mulher, em um ciclo infinito, encontra a liberdade no mar. "O céu é mar também", e nesse mar, a baleia espiritual, que é a própria liberdade feminina, se eleva a uma nova dimensão.
O espetáculo me leva a mais caminhos, mas paro por aqui, pois ainda sigo imersa na imensidão do mar dentro da baleia. Sigo aqui dentro dela, ouvindo seu coração pulsar.
Meus sinceros cumprimentos a toda a equipe por esta obra tão profunda e significativa, para dizer o mínimo.
Juliana Calligaris