O espetáculo "Casulo", da Cia Arte Móvel, é um convite à sensibilidade, um mergulho no universo lírico e complexo do luto infantil. Somos apresentados à jornada do jovem Gabriel em busca de uma terra misteriosa, onde sua avó foi parar. A peça se anuncia como uma importante reflexão sobre os ciclos e transformações da vida e sobre a importância da construção de memórias afetivas. O cenário inicial é de pura felicidade — Gabriel e sua avó no campo de girassóis. Contudo, a estabilidade é abruptamente desfeita: um vento forte leva tudo para longe, e a avó segue para uma travessia desconhecida ou "sem volta". Gabriel não entende, e é neste vazio do não-entendimento que reside a complexidade da perda na infância.
A peça explora o tema da perda e do luto, abordando as sete fases do processo de luto. A narrativa é permeada por simbolismos marcantes, como a presença de uma árvore, uma parreira seca, que outrora oferecia uvas e vinho, agora em estado de declínio. Vinho e uva, elementos que evocam a vida, a vitalidade e o vigor, contrastam com a condição da parreira. Essa árvore encontra-se próxima a um campo de girassóis, que representam a força, a luta e a esperança. Estes girassóis são plantados contra muros, mas estes muros se movem e se adaptam à medida em que o menino rompe os limites do terreno!
A figura da avó, que parte no dia de seu octogésimo aniversário, ainda em sua força e sabedoria, prepara o terreno para a jornada da vida futura do neto, deixando um tesouro embaixo da árvore do quintal, junto aos girassóis, flores-símbolo da força do próprio Gabriel. Ao partir em busca da avó, Gabriel, auxiliado por uma borboleta monarca, inicia sua jornada rumo à terra da memória, deixando para trás o mundo do presente. As borboletas monarca, no contexto da peça, representam guias espirituais, mensageiras que transitam entre diferentes planos, seja no mundo real ou na imaginação. A borboleta que acompanha Gabriel desde a infância testemunhou seu amor e dedicação à avó, guiando-o em direção a um lugar distante que, na verdade, reside em seu interior.
Gabriel atravessa um vale deserto, onde encontra uma figura enigmática, talvez a personificação da Morte, que se manifesta sob diferentes nomes e aspectos. Em seguida, ele se depara com aquela a que denomino Senhora das Balanças, que pondera as memórias, separando as lembranças alegres das tristes. Nesse processo, Gabriel aprende a equilibrar suas emoções, preparando-se para a última etapa do luto: o Rio de Lágrimas. Seu barqueiro, “o” Saudade, conduz Gabriel nessa travessia, onde finalmente encontra a avó.
O espetáculo nos apresenta uma realidade invertida, como se estivéssemos observando o lado oculto da vida, o reverso da luz. Um mundo em negativo. O mundo da memória, o interior da mente, são retratados em tons escuros, porém vibrantes, e repletos de signos que estimulam a imaginação do espectador. Nesse universo, Gabriel reencontra a lembrança de sua avó, não a pessoa em si, mas a essência do que dela restou. Nesse momento, ele encontra consolo em si mesmo, acolhendo e guiando seus próprios passos.
Ao retornar, Gabriel conta com a ajuda da borboleta monarca, que, cumprida sua missão, parte. Ao final, somos apresentados a uma imagem do Gabriel adulto, cercado por borboletas monarca, evidenciando que ele preservou sua pureza infantil e seu amor.
A dramaturgia, com concepção e direção de Otávio Delaneza, utiliza a metáfora da metamorfose como tecnologia de elaboração da perda. A fabulosa borboleta, fiel amiga de Gabriel "desde os tempos de lagarta," assume o papel de guia. Ela não promete o reencontro com a avó, mas garante que a viagem será uma grande aventura dentro de si. A borboleta, como símbolo universal da transformação, da alma e da leveza, é a figura que permite a Gabriel (e à plateia) iniciar a jornada do luto como um ato de crescimento interior.
O título "Casulo" é a chave semiótica da obra. O casulo é o lugar do isolamento, da escuridão, mas é também o espaço da gestação interior, onde a lagarta morre para que a borboleta nasça. A peça sugere que o luto, na infância, é este espaço de reclusão e transformação, necessário para que a criança emerja com uma nova compreensão da vida e da ausência. A travessia de Gabriel, portanto, é menos uma busca externa pela avó e mais uma viagem arquetípica de iniciação.
A equipe demonstra um cuidado especial com a construção da atmosfera poética. A presença da voz de Uyara Torrente, vocalista da banda "A Banda Mais Bonita da Cidade," na narração espetáculo como Borboleta, atesta a busca por uma trilha sonora que carregue a magia e a poesia necessárias para tratar do tema. O trabalho em equipe de Brunna Oliveira, Helton Carlos, Lays Ramires e Gabriel Mazon como atores, junto ao suporte técnico, completa a cena.
A realização da peça estabelece uma ponte entre a arte, a terapia e o acolhimento, reconhecendo o teatro como uma ferramenta de cura e fortalecimento de afetos.
"Casulo" é, em última análise, um espetáculo que nos convida a aceitar a morte não como um fim, mas como um ciclo de transformação. A avó se foi, mas o campo de girassóis agora reside na memória, e a borboleta é a prova de que a vida (e a aventura) continua, profundamente marcada pela ausência, mas enriquecida pela jornada interior.
Minha profunda admiração à Cia Arte Móvel por abordar este tema com tamanha delicadeza e arte.
Com força no coração, meu muito obrigada!
Juliana Calligaris