A Companhia Luzes e Lendas nos presenteia com um espetáculo que celebra a essência do teatro de rua, fundindo a poesia do cotidiano com a força do imaginário popular. Em quatro contos breves, porém impactantes, a companhia revela a grandeza das pequenas coisas: uma princesa lunar, um pescador que transforma o lixo em arte, um pintor que busca a suavidade em nossos olhares, e o encontro de beija-flores e sapos em histórias que ecoam temas como diversidade e inclusão.
A apresentação, realizada na Praça Central de Santa Bárbara d'Oeste, se integra harmoniosamente ao cenário urbano. Em meio à efervescência da praça – eventos, comércio, movimento de pessoas –, a magia do espetáculo se manifesta, permeando e sendo permeada pelo ambiente. Cada pequena caixa cênica se revela como um universo em miniatura, um convite à reflexão sobre a poesia que reside nas pessoas, no mundo e em nós mesmos. A atmosfera é enriquecida pela comunhão com o espaço, o sol, o vento, a brisa primaveril, e a "Coisa na Calçada" – que só o teatro na rua pode proporcionar– realçando a beleza da simplicidade e a potência da arte.
A minúcia na elaboração de cada objeto, a pintura de cada pequeno quadro, a atenção aos detalhes cromáticos, o recorte das figuras, a seleção dos materiais para a confecção dos bonecos, a ornamentação de cada caixa, tudo isso constitui a essência dramática. A dramaturgia transcende a simples narrativa, não se limitando a uma história. A dramaturgia reside na integralidade da produção de cada caixa, elemento fundamental deste espetáculo.
Em uma possível ordem – pelo menos aquela vivenciada por esta espectadora –, a princesa, o pescador, o pintor, os beija-flores e os sapos apaixonados compõem o tecido narrativo. Ao serem apresentadas em diferentes sequências, as histórias podem gerar uma narrativa coesa ou permanecer distintas, a critério de cada espectador.
Na sequência que observei, a princesa, o pescador, o pintor, os beija-flores e os sapos que amam compõem um mosaico narrativo. E na minha imaginação, posso alterá-las e reimaginá-las de acordo com a minha dramaturgia pessoal.
A princesa, o pescador, o pintor, os beija-flores e os sapos apaixonados se apresentam. Ao ordenar essas narrativas, o espectador pode construir uma coerência interna ou, alternativamente, percebê-las como entidades separadas. A decisão de unificar ou individualizar as histórias é do público.
A execução deste projeto exige disciplina, sensibilidade e a capacidade de decifrar as nuances expressas em cada palavra, mesmo naquelas que não são proferidas. Apenas a história dos sapos apresenta diálogos, embora a comunicação transcenda as palavras faladas. As demais narrativas se comunicam através de um texto interno, ressoando no íntimo de cada espectador. Na história dos sapos, embora com diálogos, a profundidade da comunicação ali transcende as palavras proferidas (a história pode tratar de inclusão e de lutas LGBTQIAPN+, por exemplo).
Toda essa dramaturgia, alinhada a dramaturgia da rua, o comércio, as pessoas que passam apressadas, as que passam devagar, as que passam sozinhas, as que passam com famílias e crianças. Tudo isso alinhado aos eventos, à igreja matriz, à rua. Tudo, o vento primaveril que corta o ar e engrandece a beleza. Este vento primaveril faz parte da dramaturgia do espetáculo. A direção primorosa, a manipulação, o cuidado, a escuta, a escolha dessas histórias que perfazem um todo maior.
O que mora em nossos corações? Uma princesa que quer ir à lua porque se recusa? Aceitar o destino que foi imposto a ela, um pescador que ao invés de pescar peixes pega lixo que o ser humano joga nas águas, o pintor que insiste em pintar os olhos e quando o artista revela a obra os olhos estão talvez raivosos, mas ele pintou os nossos olhos que nos deseamos para ele. Que olhos pintados são esses? Nós estamos com raiva? Nós estamos tensos? Nós estamos preocupados? O que é que esse pintor captura da nossa alma? Por que essa escolha de sobrancelhas? Os beija-flores que nos lembram que a primavera é a época do ano para a gente amar, primavera do amor e os sapos que descobrem que qualquer pessoa pode ser sapo ou princesa e que tudo bem ser sapo ou princesa. O que importa é que você tem que tomar cuidado com o que você deseja, como diria a escritora e poeta Hilda Hilst. Esse grande panorama pode ser composto e recomposto do jeito que você quiser, de acordo com a sequência de caixas de histórias que você assiste. É uma dramaturgia em forma de colcha de histórias. E isso também faz parte da proposta cênica.
O espetáculo se beneficia do capital cultural de cada indivíduo, utilizando o termo cunhado por Pierre Bourdieu. As histórias dependem da experiência de vida de cada espectador, o que também constitui uma proposta dramatúrgica. A maestria na construção de cada elemento cênico, de cada objeto, se traduz na habilidade, leveza, disposição e dinâmica na manipulação dos objetos, das histórias e dos personagens.
Saio encantada com a qualidade do trabalho, desejando vivenciar muitas outras demonstrações dessa competência. Deixo a praça profundamente tocada pela qualidade do trabalho e ansiosa por testemunhar a continuidade dessa notável produção.
Minha admiração e meu afeto ao grupo.
Juliana Calligaris.