Sabores Esquecidos: Congelar o Tempo e a Poesia da Memória
O espetáculo "Sabores Esquecidos" da Trupe Dona Formiga aborda um tema de profunda complexidade humana – o Alzheimer – com uma delicadeza e ludicidade raras no teatro infantojuvenil. A cena se passa em uma sorveteria, um cenário que evoca o doce e o efêmero, onde o protagonista, Pedro, trabalha ao lado de sua avó, Dona Lúcia.
A semiótica da sorveteria e do ato de congelar é o motor da dramaturgia: ao perceber que a avó começa a perder suas memórias, Pedro embarca em uma corrida mágica para tentar literalmente congelar o tempo e preservar o que é mais precioso. A peça utiliza a fantasia para tratar de uma realidade dolorosa, transformando a tentativa de reter o passado em uma jornada de magia e emoção. Metáforas importantes como o sótão “estão as memórias” em forma de brinquedo como representação da mente e da cognição são veios poéticos importantes explorados no espetáculo.
A linguagem do espetáculo é Teatro Musical Infantojuvenil, com diálogos curtos, poéticos e repletos de imaginação, elaborados para crianças de 6 a 9 anos. Essa escolha técnica é crucial: a música e o tom cômico atuam como um filtro, permitindo que a reflexão sobre a fragilidade da memória e o valor das lembranças seja acessível e cativante, sem ser traumatizante.
A obra nos convida a uma reflexão existencial: somos feitos de memórias, mas "só quando elas falham é que realmente paramos para lembrar da sua importância". O espetáculo nos lembra que nem sempre podemos escolher o que guardar, mas podemos valorizar cada instante antes que ele derreta. A jornada de Pedro, auxiliado por "amigos encantados", revela uma verdade amadurecida: não se pode guardar tudo, mas é possível viver cada momento com verdade.
A Trupe Dona Formiga, sediada em Santa Bárbara d'Oeste, demonstra um forte compromisso com a transformação social e o acesso à cultura, o que se reflete na qualidade do trabalho de seus jovens atores e do diretor, Felipe Damasi. A peça não é apenas entretenimento; é um convite a redescobrir a beleza do agora.
Em "Sabores Esquecidos", o derretimento do sorvete e o apagamento das memórias se tornam metáforas para a urgência da vida. A sorveteria, o lugar da doçura e da leveza, é, ironicamente, o palco de uma das reflexões mais profundas sobre o tempo e a ausência.
Minha admiração à Trupe Dona Formiga por abordar um tema tão delicado com tanta poesia e afeto.
Juliana Calligaris