O reencontro com as e os artistas ciclomáticos foi memorável! Foi um deleite, um prazer e uma honra poder rever esses companheiros de longa data. Mais um espetáculo que muito prezo da companhia: que seja louvada, Carolina Maria de Jesus!
A encenação apresenta, de maneira insuspeita, a vida e a obra dessa notável escritora brasileira. Os atores sobem em púlpitos, cadeiras e tronos para anunciar a chegada dessa mulher ao palco, abrindo alas. “Oh Abre Alas que eu quero passar…!”. Abrindo caminho para que os arautos apresentem Carolina, a quem saudamos, a rainha da favela. Salve ela!
Os arautos apresentam Carolina: escritora, mulher, mãe, catadora, negra, periférica, rainha de sua própria vida. Memórias se entrelaçam a trechos de suas obras, histórias se fundem à força de seus poemas, à profundidade de suas palavras e à maestria de sua filosofia. Em um breve instante, percebemos que o tempo retrocede de forma épica e narrativa.
Os arautos, gradualmente transformando-se em rapsodos, recuam no tempo para nos transportar à década de 1950, quando um jornalista de um renomado jornal encontra Carolina pela primeira vez e descobre nela aquilo que faltava à alma da literatura brasileira: a voz da mulher negra dos subúrbios. À medida em que o tempo retrocede, somos também transportados para a história, observando Carolina em uma espiral, percebendo que, na verdade, estamos no tempo cíclico de suas narrativas.
Portanto, não é de trás para frente o enredo, mas sim eterno e perene; “eterno presente”. A história avança e os elementos do cenário são reposicionados, completando os espaços propositalmente lacunares dessa espiral, como se encaixássemos peças em um tabuleiro de uma história pouco conhecida.
Dessa forma, o espetáculo constrói sua narrativa e seu painel, apresentando Carolina ao grande público. Assistimos a uma radionovela – ela as adorava – mesclada a uma memória de como ela possivelmente imaginava que fosse o que estava ouvindo, a cena de tudo aquilo. E pela primeira vez, a encenação de uma de suas peças! É excelente. A forma como o grupo traduz a obra remete à força do circo-teatro brasileiro e ao tipo de teatro realizado na década de 1930 no Brasil, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo (onde a artista morava), e que, certamente, deve ter habitado o imaginário da autora.
À medida que os atores desenvolvem a narrativa gestual, aprofundamos a compreensão da gênese de uma espécie de teatro antropológico, a partir dos elementos dispostos em cena.
A cena, aberta e revelada, não se define como pós-dramática, não. Não ouso dizer isso. Porém, sim, como essencialmente brasileira, brasileiramente brasileirática, a cena brasileirática! Embora utilizemos as contribuições de Brecht, observamos, em essência, a obra de Ribamar e seu teatro de narrativas brasileiras, fruto de suas pesquisas de mestrado e doutorado (atualmente), motivo pelo qual direcionamos nosso olhar do norte para o sul. Superamos a perspectiva supremacista do norte global; estamos no sul global. Encontramo-nos na América do Sul, na periferia de São Paulo, a maior cidade do Brasil, com suas complexidades, contrastes e desafios, onde uma mulher negra proclama a força de suas palavras e a necessidade de se perseverar por meio da arte na periferia da capital, na periferia do capital, na margem do sistema.
Conforme o espetáculo avança, essa espiral nos acompanha e se aproxima do ponto crucial que marca 18 de setembro de 2025, em Santa Bárbara d'Oeste. Entre risos e lágrimas, somos agraciados com a voz de Carolina na trilha sonora, por meio de canções que ela mesma interpretou e gravou.
Carolina não era apenas uma mulher que proclamava a força de suas palavras, mas também uma mulher que expressava a força de sua vida. Era uma mulher forte, alegre, determinada, vibrante e feliz. Ao final, um dos rapsodos presta sua homenagem musicalizando um dos poemas de Carolina.
Vemos a representação e narrativa de um sonho dela e como ela ressurge da morte com um sorriso. Ela desperta da própria morte e sorri. O epitáfio como uma homenagem, como uma estátua, um marco, um memorial de sua vida.
Salve Ela, rainha da favela!
E assim, após a construção do memorial, o grupo manifesta uma declaração de amor – um amor eterno à autora – exposta em cena, culminando com a imagem da grande mulher exaltada pelos rapsodos-arautos em um momento de glória.
Em tempo, destaque para o momento em que Carolina dispensa a crítica de Décio de Almeida Prado à sua obra (à peça teatral representada durante o espetáculo) pessoalmente, esnobando-o. E ao momento em que a atriz que interpreta Carolina se despede do ator que interpreta Décio, chamando-o de “repórter”, ao que ele responde: “mas eu sou o Décio!”, por ser o mesmo ator que interpreta ambos, numa gag/piada de metateatro muito boa e sagaz!
Esta espectadora sentiu-se profundamente emocionada!
Minha gratidão ao grupo por mais uma jornada no coração do Brasil. Evoé, com carinho e um abraço ao grupo.
Juliana Calligaris.