A peça "O Sol Avermelhou" apresenta uma notável força poética. O texto de Dênis Espanhol narra a saga de uma família de retirantes, em busca de refúgio da terra árida castigada pelo sol. O sol, personificado como uma entidade ancestral, responsável pela saúde do planeta, manifesta cansaço diante da ingratidão e do descaso humanos.
Em uma noite enluarada, uma planta enigmática surge do solo ressecado. As lágrimas da lua cheia banham essa pequena flor, da qual emerge uma nova vida: a filha da terra, acolhida e cuidada pela mãe da família. A menina recebe o nome de Cândida, e seu irmão Tomás participa de seus cuidados. O pai, herdeiro de uma semente outrora guardada por seu próprio pai, transmite-a ao filho como legado da terra.
Ao chegarem a um vilarejo chamado Pacha Mama, são visitados por uma sábia anciã que revela uma profecia: quando a semente for plantada em solo seco, abrirá um caminho para o sol, permitindo que a filha da terra restabeleça a comunicação com o astro rei. Cândida e Tomás empreendem uma jornada em busca de um local seguro para plantar a semente. Ao fazê-lo, dialogam com a própria lua, que novamente rega a semente com suas lágrimas. Dela, uma planta brota, e, através dela, Cândida alcançará o sol.
Entretanto, ela adormece, incapaz de suportar a vasta informação proveniente da humanidade. Um pássaro desperta-a de seu sono, revelando o desaparecimento da humanidade. Preocupada, Cândida conversa com o sol, expressando sua decisão de cuidar da terra, pois, da altura e da profundidade do sono, compreendeu muitas coisas. O sol concede-lhe um desejo, e ela opta por retroceder no tempo, a uma época em que a humanidade ainda mantinha uma conexão com a vida, com os ciclos da natureza e com a terra.
Além disso, Cândida escolhe renascer, desta vez como humana, filha da mesma mãe, do mesmo pai e irmã de Tomás. O tempo retrocede, e a humanidade reaparece sobre o planeta, agora em harmonia com a Terra. Cândida retorna ao mundo, na forma de um bebê deixado à porta da humilde casa dessa família. Cândida decide vivenciar um nascimento biológico, embora seja uma filha adotada, reafirmando o conceito de pátria como a família à qual se deseja retornar, parafraseando um verso de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, em "Passagem das Horas".
A peça também incorpora referências à obra de Cândido Portinari, tanto visualmente quanto textualmente, criando signos relevantes, além dos mencionados.
Além de homenagear o artista, o nome "Cândida" evoca a purificação, a pureza e a redenção. A composição geométrica, com sua centralidade na figura feminina, estabelece perspectivas e contrastes com o fundo que representa o Sol, reforçando esses simbolismos. O trabalho estabelece, para esta espectadora, uma conexão direta com os movimentos contemporâneos de trabalhadores rurais que buscam acesso à terra para cultivo, visando a liberdade da pressão e dos agrotóxicos. Remete àqueles que, mesmo em terras inicialmente improdutivas, encontram um solo sagrado para plantar e colher, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A obra é, portanto, impactante e relevante.
A partir da trilha sonora original, que impulsiona a narrativa, o espetáculo se desenvolve sob a premissa do teatro narrativo. A cenografia enriquece o texto, e o ponto culminante reside na utilização do teatro de sombras. Essa técnica, empregada com maestria, cria imagens impactantes que transportam o espectador para o cerne da história.
Elementos simbólicos, como a valorização da figura materna – que acolhe a filha, representação da humanidade, predestinada e escolhida –, ressaltam a força da narrativa. O espetáculo também aborda o empoderamento feminino e a reinterpretação da figura masculina, através do pai e do irmão Tomás, que servem como pilares para as personagens femininas, condutoras da renovação da vida. A inversão dos papéis da lua, representando o masculino, e do sol, representando o feminino, subverte estereótipos de gênero, conferindo profundidade à obra.
Em suma, trata-se de um espetáculo memorável, com um elenco talentoso e vibrante, sob uma direção cuidadosa e precisa. Agradeço ao grupo pela beleza desta produção.
Meu abraço e meu carinho,
Juliana Calligaris.