O espetáculo "SPUTNIK II E OUTRAS HISTÓRIAS CANINAS" da CIA DO TRAILLER é uma obra audaciosa que utiliza a lente do universo canino para refletir sobre o maior mistério da vida: a morte. A companhia, conhecida por sua pesquisa em performance e memória histórica , inova ao levar a estética do teatro documentário para o público infantojuvenil.
A dramaturgia se constrói em torno de três cachorrinhas, cada uma portadora de uma narrativa que transcende a si mesma:
Laika, a cachorrinha russa, símbolo da ciência e do sacrifício, o primeiro ser vivo em órbita.
Enola, a que veio de Minas Gerais para São Paulo durante a pandemia, ecoando o tema da migração e das perdas recentes.
Billulaine, a cachorrinha imaginária que viajou o mundo e escreveu um livro, representando a liberdade da imaginação e a transcendência pela arte. E, mais, ela vinga a vida que Laika não teve. Ela é como a Laika redimida pela ficção!
Da narrativa da adoção de Enola à história da saga e do sacrifício de Laika em nome da ciência e em prol da humanidade, somos introduzidos a um universo de experiências femininas. As cachorras, que podem ser lidas como mulheres, são evocadas através de um retroprojetor e por vídeo, com lâminas e filmes que remetem a um tempo passado e a narrativas ancestrais e atuais. A história de Laika, sobretudo, é narrada no palco sendo acompanhada pela projeção de imagens por lâminas retroprojetoras; as de Enola incluem registros do Instagram, que ilustram a trajetória dela rumo à sua nova família. Os documentos apresentados – mesmo os inventados – são as vidas das três protagonistas e, simultaneamente, a vida de quem existiu e proporcionou alegria à elas e/ou se nutriu da alegria e da vida delas.
Bilulaine – a cachorrinha inventada – apelidada de Bilu, nasceu com uma deficiência física, o que a impediu de se desenvolver plenamente. Adotada, recebeu educação e, apesar das dificuldades, estudou antropologia, explorando o mundo e as diversas culturas, com foco nas diferentes formas de celebração da morte. Até conheceu a Rússia, onde viveu sua “ancestral". Ao final de sua vida, Bilulaine, que viveu menos tempo que os humanos, deixou um legado de conhecimento, alegria e vivacidade, incluindo um livro de sua autoria.
O espetáculo, repleto de emoção, provoca risos e lágrimas. Bilulaine, na percepção desta apreciadora, como a personificação da esperança para Laika. Bilulaine conquistou o que Laika não pôde: tornou-se cientista, antropóloga, conhecedora do mundo, dos povos e de suas culturas, dominando idiomas e deixando um legado para a humanidade. Ela é o alter ego de Laika.
Essas três histórias se unem para propor um diálogo acessível e poético sobre a morte, reconhecendo-a como parte do ciclo natural da vida. A obra, concebida durante a pandemia, responde a uma necessidade urgente de abordar um assunto que se tornou central nas conversas, especialmente com as crianças: as crianças órfãs da pandemia…
A escolha da linguagem épica com procedimentos do teatro documentário é o ponto de maior refinamento estético. O grupo utiliza documentos reais em cena, combinando-os com música, projeções e sombras para explorar a ludicidade da infância. Essa fusão exige um distanciamento crítico [brechtiano], que, no entanto, é permeado pela emoção das histórias caninas, permitindo que a criança reflita sobre a morte sem ser engolida pela tragédia.
Através deste documento ficcional, compreendemos a realidade subjacente. As vidas narradas em todos os tempos são memórias de resistência. O espetáculo, belíssimo, original e inédito em sua proposta e realização, cativa e emociona o público, que sai comovido com a força dessas histórias.
A Cia do Trailler, com 20 anos de trajetória, consolida sua relevância no cenário paulista. Sua indicação ao 35∘ Prêmio Shell de Teatro com "Ópera Febril" atesta o rigor estético e documental de seu trabalho. Em "Sputnik II", essa inventividade é aplicada para iluminar o luto e a ausência através do olhar sensível e fiel dos animais. O destino de Laika, o mistério de Enola (ao ver o céu…) e a imaginação de Billulaine nos ensinam que a morte é, sim, o maior mistério, mas que a vida (e a arte) é a nossa forma mais potente de órbita. E ainda bem que o teatro é o lugar, por excelência, da reparação histórica (para dizer o mínimo)! Evoé!
Minha profunda admiração à Cia do Trailler por este trabalho essencial e corajoso.
Bravo!
Com carinho,
Juliana Calligaris