Em 2002, quando o artista Ésio Magalhães concebeu esta performance, a internet ainda se apresentava com três letras: WWW. Atualmente, o acesso se dá por meio do prefixo "http://". Qual a significação de WWW? Por que o título da obra não foi alterado?
As três letras podem evocar diversas interpretações, como sugere o artista: "What a Wonderful World", "Empoderamento Feminino", "Mundo, Mundo, Mundo", sendo este último uma referência visual ao inverter a sequência.
O personagem Willy, cujo nome inicia com a letra "W", é introduzido. Quem é Willy? Ele pode representar um cachorro, talvez imaginário. Willy gradualmente se faz presente, interagindo, em nossa imaginação, com Zabobrim, o palhaço vivido pelo artista.
Percebemos então que Willy, na verdade, é um companheiro de quartel, ambos envolvidos em uma preparação para uma operação militar. Eles entoam o hino à liberdade, que, paradoxalmente, aprisiona. Em vez de libertar Zabobrim e Willy, que anseiam por brincar com seu aviãozinho de brinquedo, o hino os silencia e lhes causa sofrimento.
O palhaço surge trajando uma camisola, um figurino que ele não compreende. O que representa essa vestimenta? Uma roupa de dormir de maternidade, um traje de bebê, o uniforme de um indivíduo desajustado, uma criança em corpo de adulto, vestindo uma roupa desproporcional ao seu tamanho?
A cena se desenvolve com uma sequência de aviões de papel cruzando o palco. O que antes era apenas um brinquedo transforma-se em representações de aviões que, ao cruzar o planeta, lançam bombas e se transformam em baterias de mísseis aéreos e antiaéreos. Essa imagem evoca as cenas da Guerra do Iraque, exibidas na televisão, com mísseis explodindo em todas as direções. Evoca os “botões do juízo final” nas Pastas 007 em Moscou e Washington nos anos 1980.
Soldados transformam-se em crianças brincando, e a guerra aérea se manifesta através de mísseis teleguiados de papel. Zabobrim entra em cena com uma bazuca WWW, um canhão desproporcional ao seu corpo, destinado a causar destruição. A bazuca ou o canhão exige de Zabobrim um sorriso forçado, uma demonstração de força.
A guerra, irreconhecível, apaga tudo. Nela, o inimigo não é reconhecido, e nós mesmos nos descaracterizamos para destruir o outro. O outro deixa de ser um semelhante para se tornar algo a ser erradicado.
Zabobrim ordena que Willy preste continência. Zabobrim, repetidamente, executa a continência, ferindo-se na testa, o centro do pensamento, em sinal de submissão ao militar que comanda uma operação de um quartel seguro, enquanto seus soldados na frente de batalha morrem em nome de uma suposta liberdade, de uma pátria que se sobrepõe a outra, de uma cultura que anula outra.
Quando a luz de uma vela fende a escuridão, a delicadeza se manifesta. Um apagão? Zabobrim desconhece. Mas Willy oferece uma vela. A chama de um fósforo irradia o calor que a frieza, aparentemente, persiste em manter.
O soldado em meio à guerra idealiza um jantar, um jantar simples, para que possa reconhecer algo. Ele consome a vela, a engole, pratica a antropofagia da vela, aquilo que aquece interiormente, que representa o familiar. E então percebemos que as alucinações de Willy se intensificam, deteriorando seu estado mental. As alucinações de Willy se confundem com as de Zabobrim. Talvez seja Willy, seu alter ego, transferindo suas próprias alucinações para Zabobrim: o banho de urina, seus fluidos, lavar-se com seus próprios líquidos, purificar-se com seu suor, batizar-se de si mesmo, mais uma vez prestar continência, perder o juízo, enlouquecer.
– Estamos aqui para livrar este país do ditador!
– Para sobrepor nosso governo ao deles, pois o nosso é superior, em nome da liberdade!
Frases repetidas por ambos os lados, desde tempos imemoriais, desde a Ilíada e a Odisseia. E assim, percebemos que se trata, na verdade, de um espetáculo pacifista, acima de tudo! Zabobrim confronta a guerra com a anti-guerra: o riso, “a arma mais poderosa de todas”.
O kit do soldado feliz na visão de Zabobrim soluciona toda a questão, a guerra se torna um jogo.
Medo.
A bomba é uma bomba de chocolate.
A guerra moral: influenciar a plateia com o medo, para que compreendamos o quanto o medo é construído em nós. Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.
Willy não deseja tomar uma posição, não deseja apertar o gatilho, não deseja lançar a bomba, não deseja a violência. A bomba é uma arma de destruição em massa, não uma bomba de chocolate. E Willy gostaria que fosse um doce. Ao fazermos amigos, percebemos que o outro é semelhante a nós. Zabobrim reconhece no inimigo – através de uma cena com o espectador chamado Aquiles, uma coincidência notável – a si mesmo. Ao fazer essa amizade, Zabobrim percebe a semelhança com o outro. E essa é a derrocada final de Willy.
Que se explode com um tiro no peito… um tiro no peito…
Acaba a realidade inventada da fantasia. A guerra, com toda sua crueldade, com toda sua morte e destruição, salta aos olhos de Zabobrim.
Crianças adultas brincando de morrer. A liberdade não existe. Existe apenas uma liberdade, aquela que escolhe não matar, aquela que escolhe não fazer guerra. A escola de Willy.
A bomba de todos explode no peito de Zabobrim, o único Willy que restou. Se Willy se explodiu no peito, Zabobrim vai receber as bombas em nome da paz.
O palhaço acolhe a morte e a paz. O palhaço se recusa a morrer.
Zabobrim, ao final, após receber uma saraivada de bombas de chocolate no peito, deita-se sobre sua roupa de soldado estendida no palco. Ou seria a de Willy?
Ele morre ou sonha em viver… “dormir, talvez sonhar” ao som do hino da liberdade.
O palhaço Zabobrim, em seu estado de repouso, sonha com o término da guerra, embalado pela melodia que outrora o afligia. Este hino, transformado em samba, celebra a liberdade.
Zabobrim sorri ao perceber, deitado sobre um uniforme de guerra deposto, estendido no chão após receber novo impacto de objetos lançados da plateia – aviõezinhos de papel –, que antes simbolizavam o sofrimento, agora representam apenas o jogo livre, o pacto das crianças, o pacto do teatro… o pacto da metacena.
Ali, a personificação do hino e o corpo de Zabobrim se fundem. Aquele – quem quer que fosse – que sucumbiu, agora em sonho, permanece envolto em mistério; e como Zabobrim, apenas podemos compartilhar suas esperanças.
Este espetáculo grandioso, como o próprio palhaço mencionou, ainda encontra ressonância na realidade. Que, assim como Zabobrim em seus sonhos, em algum momento, Ésio Magalhães possa interromper a encenação deste espetáculo!
Como ele mesmo disse, sonhemos com um dia em que este espetáculo não seja mais necessário. Que seja apenas uma crônica de um tempo ido, que não voltou mais.
Com esperança e fé, meus sinceros agradecimentos.
Meus cumprimentos ao grupo.
Juliana Calligaris.